Entre a Distopia e a Utopia
A linda imagem de “A Canção da Estrada” (“Pather Panchali”, 1955), primeiro filme do mestre Satyajit Ray, nos acompanhará durante toda a 48ª Mostra. O storyboard do longa que dá início à trilogia de Apu foi cedido por Sandip Ray, filho de Satyajit, para homenagear o pai e todo o cinema indiano, já que a cinematografia do país ganha um foco especial nesta edição. “Não ter visto o cinema de Ray significa existir no mundo sem ver o sol ou a lua”, disse uma vez o grande Akira Kurosawa. Então vamos usufruir do sol e da lua, do humanismo e da coerência, da moral e da beleza, raridades nesses tempos distópicos.
Com esse espírito, daremos início à nossa maratona graças aos nossos patrocinadores, parceiros e apoiadores, a quem agradecemos muito. Também é graças a toda a equipe da Mostra, que trabalhou duro ao longo do ano, que temos mais uma edição que muito nos orgulha.
A largada da 48ª Mostra será com “Maria Callas”, de Pablo Larraín, filme que faz um retrato dos últimos dias da icônica cantora lírica. A sessão não poderia ser em um local mais emblemático do que a Sala São Paulo, palco da música clássica e orgulho de paulistanos e brasileiros, que comemora 25 anos em 2024. Há 26 anos fizemos uma primeira sessão na Estação Júlio Prestes e, nos anos seguintes, faríamos mais três aberturas nesse lugar emblemático.
Neste ano, homenagearemos o cineasta Raoul Peck com o Prêmio Humanidade. Nascido no Haiti, criado no Congo e em Nova York, educado na França e formado na Berlim dividida, viveu a condição do exílio antes de se tornar cineasta. Talvez também por esse histórico a sua obra reflita tanto as preocupações com o humano e as injustiças sociais. “Ernest Cole: Achados e Perdidos”, seu mais recente filme premiado como melhor documentário no último Festival de Cannes, terá apresentações especiais na programação da Mostra.
Já o prêmio Leon Cakoff será entregue a um dos maiores cineastas da história do cinema: Francis Ford Coppola, que traz o seu mais recente trabalho, “Megalópolis”, para a noite de encerramento. O Prêmio Leon Cakoff homenageia grandes cineastas, diretores originais que ousam e se arriscam para realizar os seus filmes e transformam a linguagem cinematográfica.
Assim como em todas as edições, a Mostra apresenta as obras mais recentes de cineastas renomados como Walter Salles, Jia Zhang-ke, Miguel Gomes, Patricia Mazuy, Tsai Ming-liang, Radu Jude, Alain Guiraudie, David Cronenberg, Mohsen Makhmalbaf, Lav Diaz e Hong Sang-soo, além de títulos de tantos outros mestres. Também exibiremos filmes muito esperados e premiados no circuito de festivais como “Anora”, de Sean Baker, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, “Dahomey”, de Mati Diop, ganhador do Urso de Ouro em Berlim, e “O Brutalista”, de Brady Corbet, melhor diretor em Veneza e, ainda, uma porção de descobertas de novos realizadores.
A apresentação de “Marcello Mio”, dirigido por Christophe Honoré e protagonizado por Chiara Mastroianni, nos inspirou a fazer uma homenagem ao centenário de Marcello Mastroianni. Cinco filmes de cinco realizadores de diferentes nacionalidades serão apresentados em novas cópias, e nos mostram Mastroianni visto por Manoel de Oliveira, Raúl Ruiz, Theo Angelopoulos, Jacques Demy e Nikita Mikhalkov.
Dando sequência ao trabalho da Mostra com a valorização da história do cinema brasileiro, vamos exibir o restauro dos filmes “Também Somos Irmãos” (1949) e “Auto de Vitória” (1966) —pela Cinemateca Brasileira—, “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970) —restaurado pela Cinemateca do Capitólio— e “Brincando nos Campos do Senhor” (1991). Também lembramos de Rogério Sganzerla nos 20 anos de sua morte com a apresentação de uma nova cópia digital de “Abismu” (1977).
Nos sentimos honrados, mas também um pouco encabulados, em apresentar a série “Viva o Cinema! Uma História da Mostra de São Paulo”, dirigida por Marina Person e Gustavo Rosa de Moura. A série da Max/Warner Bros. Discovery traz o olhar pessoal dos diretores sobre a Mostra e a sua história.
Pelo quarto ano consecutivo, a Mostra realiza o Encontro de Ideias Audiovisuais, que engloba o VIII Fórum Mostra, o VIII Da Palavra à Imagem e o IV Mercado. Ação que faz da Mostra não só um lugar para ver cinema, mas também um espaço de encontro para discutir o audiovisual nos seus aspectos artísticos, mercadológicos e políticos.
Mas o cinema retrata também o estado do mundo, relembra a história e nos propõe reflexões. Apresentaremos então olhares sobre os povos levantinos, uma seleção de filmes do e sobre o Oriente Médio. Entre eles estarão o duplamente premiado em Berlim, “No Other Land”, feito por um coletivo palestino-israelense; o recém-premiado em Veneza “Happy Holidays”, do palestino Scandar Copti; “Linha Verde”, da libanesa Sylvie Ballyot, e “A Lista”, de Hana Makhmalbaf. Já o cineasta israelense Amos Gitai trará seus dois últimos filmes apresentados no circuito internacional neste ano: “Shikun” e “Por que a Guerra?”. Homenagearemos ainda o pioneiro e laureado cineasta palestino Michel Khleifi com a apresentação de três de seus mais importantes filmes.
Se muitas vezes a atualidade nos faz sentir em uma distopia, como se estivéssemos no novo filme de Asif Kapadia, “2073”, ainda assim acreditamos que o cinema promove a empatia e pode nos ajudar a entender que as pessoas de um determinado lugar não são seus terríveis líderes ou dirigentes. Também por meio do cinema podemos ver novamente a utopia no horizonte, como no filme “Capitães de Abril” (2000), que Maria de Medeiros apresenta em cópia restaurada especialmente para as comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos. Tempos de esperança no horizonte para portugueses e brasileiros.
E por acreditar que teimosamente devemos sempre tentar caminhar em direção à utopia, a Mostra inaugura neste ano a 1ª Mostrinha, uma seleção de 22 títulos para o público infantojuvenil. O filme de abertura será “Arca de Noé”, de Sérgio Machado e Alois Di Leo, uma coprodução do Brasil com a Índia, para coroar esta Mostra com sabor indiano.
Também por ainda acreditar que a utopia pode estar no horizonte, a Mostra novamente é um evento carbono neutro, como tem sido nos últimos dez anos.
Uma boa Mostra a todos!
Renata de Almeida