Homenagens

Retrospectiva | Satyajit Ray

Em meio à multidão de filmes, cenas e frames que disputam a atenção do público da Mostra, a imagem com maior visibilidade representa algo tão comum e extraordinário: uma casa. Nela, vemos uma mulher penteando os cabelos de uma menina. Em segundo plano, estão um homem e um menino sentados à porta. 

A simplicidade da situação retratada, do espaço e do traço resumem os poderes da arte de Satyajit Ray (1921-1992). O desenho escolhido para o cartaz da 48ª Mostra faz parte do storyboard criado pelo cineasta indiano durante a preparação de seu primeiro longa, “A Canção da Estrada”. A imagem capta o cotidiano de uma família, bem como abrange dois universos: o de dentro e o de fora, o da casa e o do mundo. Depois de 70 anos, o cinema contemporâneo ainda segue captando a complexa, e às vezes conflituosa, coabitação do íntimo e do público. 

Nesta retrospectiva que reúne sete filmes da primeira e mais decisiva década da filmografia de Ray, essas questões se fazem presente, bem como uma delicada radiografia das transformações e tensões da sociedade indiana. 

A trilogia “A Canção da Estrada” (1955), “O Invencível” (1956) e “O Mundo de Apu” (1959) mapeia aspectos tanto das condições sociais da Índia como dos valores individuais. Tal como os romances de formação, o destino de Apu, da infância à maturidade, é também uma história coletiva de seu tempo. 

De “A Grande Cidade” (1963) a “O Herói” (1966), os filmes da retrospectiva mostram como o olhar de Ray, além de etnográfico, podia também ser filosófico e político, refinado na tradução dos riscos da modernidade e do fardo das tradições. E o recorte ainda inclui o incontornável, “A Esposa Solitária” (1964), obra-prima absoluta sobre a condição feminina, e “O Covarde” (1965), um retrato das mudanças comportamentais em seu país. 
Naquele momento histórico em que parte do cinema tentava ser mais que apenas comércio, a aparição de nomes estranhos ao eixo Europa-Hollywood encontrou terreno fértil. 

Os filmes de Ray ajudaram a descentralizar o olhar cinéfilo, a perceber outros tons nas faces e nos corpos, a multiplicar os modos de ver. Em suma, fizeram parte da fundação do que, mais tarde, ganhou os apelidos de “cinemas periféricos” e “world cinema”. A obra de Ray agiu naquele momento como farol na construção dos terceiros cinemas mundo afora. 

Embora identificado com o neorrealismo pela crítica ávida de etiquetas, o realismo de Ray trilha diferentes caminhos. Ele aprendeu cinema vendo filmes. Desse modo, absorveu tanto a eficiência narrativa de Hollywood (em filmes de John Ford e John Huston, sobretudo) quanto a liberdade de europeus, como Jean Renoir, de combinar autenticidade e personalidade. 

Em vez da filiação exclusivamente europeia, pode ser mais frutífero vincular Ray a uma difusa combinação de realismo com tradições locais, assim como seus compatriotas Guru Dutt e Ritwik Ghatak, além dos representantes do movimento Cinema Paralelo. Do outro lado do mundo, Nelson Pereira dos Santos é um exemplo próximo de como este caminho do realismo serviu de abrigo contra o bombardeio das potências, e que na década seguinte, fomentou uma ebulição criativa no Irã, da qual se nutriram cineastas como Abbas Kiarostami. 

No entanto, mais que a matriz cinéfila, a obra de Ray se constituiu a partir de outras linguagens enraizadas na cultura local. Ele já era um experiente ilustrador, escritor e compositor antes de integrar essas habilidades à de cineasta. Ele ilustrou uma edição de “Pather Panchali”, romance do escritor indiano Bibhutibhushan Bandyopadhyay que está na origem de seu primeiro longa. Mais tarde, ele se tornou um caso incomum, tal como Charles Chaplin e John Carpenter, de diretor que compõe as músicas de seus filmes. 

Outra influência não menos importante são suas origens bengalesas. Nascido e criado em Calcutá, Ray foi um herdeiro tardio do chamado Renascimento Bengalês. Este movimento social, intelectual e cultural reuniu, desde fins do século 18, adeptos dos ideais anticolonialistas e progressistas que visavam a emancipação tanto da nação como dos indivíduos, homens e mulheres. 

O avô e o pai de Ray haviam sido membros proeminentes do movimento, que tem em Rabindranath Tagore uma de suas figuras mais conhecidas no Ocidente. Além dos ideais, Ray tinha em comum com eles a excelência em múltiplas linguagens criativas. 

Em um artigo luminoso sobre a obra de Ray, o crítico francês Michel Ciment ressalta que a herança do espírito renascentista bengalês se miscigenou aos “combates de Nehru e Gandhi, que acompanharam sua adolescência e o início de sua vida adulta (ele tinha 20 anos no momento da independência). Embora assuma ter tido pouca consciência política na juventude, sua obra comprova, desde o princípio, um conhecimento agudo das relações entre os indivíduos e a sociedade”. 

Os filmes da retrospectiva de Satyajit Ray apresentados pela Mostra dão acesso a essas realidades materiais e espirituais da Índia em que ele viveu e criou, e que resultaram em alguns dos títulos definitivos da história do cinema.